quarta-feira, 24 de março de 2010

conheci dois gatos.

o gato da cidade lambe as patas feridas sob o olhar dos transeuntes doentes. o gato da cidade carrega em cada íris negra o fundo dos mistérios dos antigos templos druidas afundados. o gato da cidade esconde o verdadeiro sorriso debaixo da manta de listras negras e brancas. o gato da cidade debruça-se na varanda para o sol, para a lua e para as quedas e ascensões. o gato da cidade passeia nos tapetes de calçada, valorizando os mantos verdes fofos practicamente inabitados. o gato da cidade entretem-se com as paredes, com os quadros, o cheiro dos espelhos. o gato da cidade vive entre 4 paredes e quando assim não é, deita-se em soalhos de madeira, respirando o pó, enquanto ouve os passos das baratas no quadriculado dos azulejos à la mode de outra época. o gato da cidade maravilha-se com as luzes. com as luzes dos semáforos, dos candeeiros das ruas, com os letreiros. com frases luminosas como "Jesus Cristo é o Senhor" nas ruínas de um antigo cinema comprado por uma Igreja Maná. o gato da cidade perde-se nos símbolos gravados na pedra, no sangue & suor e nos cortinados ondulantes das outras casas. o gato da cidade encolhe os ombros às políticas, às conversas acerca do clima, às virtudes e podres da civilização. o gato da cidade alimenta-se de cafeína, nicotina e ansiedade. o gato da cidade viaja no lugar invisivel dos autocarros. o gato da cidade carrega o rio dentro da mente e procura o equilíbrio, ao pé coxinho, para que a mente não acabe num esgoto.
o gato da cidade vislumbra o lixo. chora com o lixo. impede-se a devorar mais lixo.
respirar. respira o resíduo das outras vidas, bafejado. o gato da cidade foge da velocidade dos automóveis e do barulho. esconde-se debaixo das rendas, dos trinados passageiros dos pássaros.
o gato da cidade deambula quando a rotina violenta lhe concede 24 horas. e conhece bem a prisão da responsabilidade.

o gato do campo adormece tranquilamente. sem medo do medo que a noite sabe trazer.
o gato do campo encontra a paz nas searas douradas e nos invernos gelados cortados pelos vôos nocturnos dos morcegos. e é. tanto quanto o da cidade, sendo o mesmo, apenas em maior sintonia com o espaço, com a inexistência de tempo e com os silêncios, os ecos e a verdade das coisas até na caixa dos botões.

um dia falarei da gata que viveu em mais casas que eu e que se deitava no meu colo e me dizia para não ser tola.
(ainda que não seja adequado, a existência é uma forma de escrita e vice-versa, assim seja, escreverei acerca do que vier. à cabeça, ora pois claro.)

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